segunda-feira, janeiro 24, 2005

Um ótimo texto

Vi este texto no excelente Blog "Em Questão", do amigo Guilherme, e gostei tanto que quis dividir com vocês. Sou fã da Lya, acho que ela é uma pessoa muito sábia. Vale a leitura.

O verdadeiro ecologismo (Lya Luft/Revista Veja Edição 1889, 26/01/2005)

Sem maiores projetos, que os diários já me ocupam bastante; sem nenhuma receita, pois não sou cretina; sem otimismo falso, que não sou boba, mas também sem desesperança, entrei em 2005 com uma experiência boa a mais na bagagem de minhas perdas e ganhos.

Reafirmei minha certeza de que não somos apenas invejosos e ressentidos. Nem sempre nos deleitamos na arrogância burra do preconceito e do julgamento. Nem sempre contaminamos e estragamos o ambiente físico e emocional em que vivemos, num impulso suicida. Não só entupimos o coração e os ouvidos, sem falar na mente, com barulho, sujeira, tumulto, segundo o lema "quanto pior, melhor; quanto mais feio, mais aplaudido; quanto mais agitado, mais nos seduz". Não: às vezes a gente é melhor que isso.

Vejo famílias que se cuidam apesar das dissidências, e me animo. Sinto o afeto de amigos e leitores, e me emociono. Encontro raros casais que por uma vida inteira se admiram e acarinham, e penso que nem tudo foi perdido. Acompanho pessoas que em qualquer altura tentam se transformar, recomeçar, e fico ainda mais otimista. O bom e o belo existem no torvelinho da violência física ou emocional, na poeirama das aflições mais variadas, para ser apreciados e cultivados. Por sua causa, diariamente, a gente devia agradecer a Deus (ou aos deuses, não importa).

Mas há mais: aqui e ali, uma pessoa descobre paraísos e os incrementa, os preserva, entrega-os para nosso refúgio. Há gente que, em vez de destruir, constrói; em lugar de invejar, presenteia; em vez de envenenar, embeleza; em lugar de dilacerar, reúne e agrega. Esse é o verdadeiro ecologismo, e concordo inteiramente com o que escreveu um dia desses meu querido Ferreira Gullar: quem de verdade aprecia a natureza não é catastrofista, não vive ameaçando de dedo em riste. Para ele, respeitar e amar (plantas, animais, o outro e a si mesmo) só é legítimo quando natural e esperançoso.

Passei um tempo brevíssimo em um resort à beira do mar. Nem Caribe nem Bali: aqui, neste nosso Brasil. Se puder, voltarei: ali a mata praticamente intacta nos bota no colo diante do mar tranqüilo. Nem a piscina com casais e crianças perturba o ambiente. Conforto e aconchego substituem luxo e ostentação. Ali reina gentileza, não assédio. Alegria, não solenidade. Bem-estar sem espalhafato.

A pequena enseada é um abraço; o cheiro de mato é um chamado, o reflexo das embarcações no mar convida a celebrar a vida numa intimidade com o mundo que a gente esqueceu na agitação cotidiana. Na areia breve colhem-se conchas que desapareceram das praias povoadas. Andar por ali nos devolve a momentânea inocência primordial, perdida nos tsunamis do que se chama civilização.

Parece utopia em pleno reinado da violência, da superficialidade quase doentia, eventualmente da maldade que grassa por aí, mas é real ainda que raro. E tem mais: algumas pessoas conseguem criar atmosferas parecidas em sua própria casa, seu grupo de amigos ou colegas – e isso se faz simplesmente existindo. Não é preciso aprender decoração, técnicas orientais ou requintes ocidentais: tudo nasce da nossa filosofia de vida, se a tivermos. O que me faz acreditar, como as crianças, que eventualmente o bem não é esmagado – desde que a gente consiga parar, olhar, escutar e se transformar um pouco que seja.

Afirmo aqui, como se fosse primeiro do ano, minha esperança de que a gente se humanize um pouco, se de verdade quisermos isso. Como um contraponto à violência, à corrupção, à inveja, à ignorância, bem que as coisas podiam melhorar. Por exemplo: a gente não leria nos jornais diários que mais uma criancinha foi devorada por um cão feroz cujo dono se descuidou criminosamente. Talvez até a loucura se invertesse. E por que não?

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